Outro conto

Era estranha. Todos a achavam muito estranha. Fazendo parte de uma família numerosa, causava estranheza exatamente por não ter as características que a igualavam os outros irmãos, ou seja: a inquietude decorrente da idade, a esperteza para livrar-se dos pais perante os apuros e beleza, marca maior da família.
Vivia calada, era taciturna por natureza. O olhar raramente saia do chão e se alguém se aproximava fugia rápido do contato. Todos a viam como animal arisco, dessa forma, foi sendo posta de lado até mesmo pela mãe, que não cansava de contar o quanto sofrera para trazer aquele” animalzinho” ao mundo. Tendo até chegado próximo à morte. E foi assim que ela deixou de ser percebida em casa, tornando-se apenas uma sombra a perambular em meio a outras sombras.
A mata era sua casa, seu lugar real. Subia as árvores disputando fruta madura com os pássaros. No rio banhava-se e encontrava-se com sua alma ao vê-se refletida nas águas. Conversava com o vento e contava-lhe sobre a dor de ser estranha a sua família. Não podia sentir-se parte daquele mundo, até mesmo quase matara a mãe ao nascer! Sentia o resultado disso tudo pela maneira que todos lhe tratavam e fora isso que a fizera isolar-se de todos. Tinha medo, medo dos sussurros, das palavras bruscas, dos olhares esquivos e ansiava por um carinho que nunca chegava.
O tempo passou, a infância também e ela continuou sem ser vista. Os irmãos também crescidos tomaram rumos diferentes em suas vidas: uns casaram, outros foram estudar fora e ela continuou sendo à sombra da casa.
Certo dia chegou à notícia de que um dos filhos que estava fora a estudar viria passar as férias e traria consigo alguns amigos.
Começaram então os preparativos para receber as visitas. Nada lhe diziam, no entanto, tudo ela sabia, pois não era à sombra da casa?
Começou então sua inquietude, era seu sossego ameaçado. De antemão, já
E numa certa noite, como sombra que era, percorreu a casa e foi ao encontro daquele que a cativara e pela primeira vez em sua vida não foi arisca. E extasiada, sorveu o amor a ela oferecido em grandes e sôfregos goles. Descobrindo a ternura e o prazer de ser tocada. Sentiu-se verdadeira, encontrando nos olhos daquele jovem a certeza de que existia.
O dia amanheceu e ela despertou com vontade de estar viva. Levantou-se e andou pela casa de cabeça erguida, olhando a família, buscando olhares, mas ninguém percebeu. Ela continuava sendo a sombra. Ensaiou um sorriso tímido e seguiu em frente, não tinha problema, algum dia iriam vê-la.
Resolveu então ir para a mata, ia comungar sua alegria com aqueles que preenchiam seu universo. De longe percebeu que os jovens estavam a banhar-se no rio. Curiosa, escondeu-se atrás de uns arbustos e ficou a contemplar aquele que no silêncio da noite a amara e fizera com que ela pela primeira vez se percebesse.
Os jovens nadavam e riam muito e ela tentando saber do que eles falavam,
aproximou-se sem ser vista. No início o barulho do vento a confundiu e ela não pode entender bem o que diziam. Até que o vento amainou e as palavras e risadas se tornaram nítidas: o seu belo jovem, aquele, dono do olhar cativante, contava ao amigo, da noite anterior. De como a “estranha” tinha ficado encantada com ele e tinha ido até seu quarto. E assim desnudou-a da roupa e da inocência diante do amigo, contando-lhe detalhes do que havia acontecido. Depois riu alto, muito alto e ela viu nesse riso a crueldade que não tinha visto naquele olhar.
Eles se foram sem percebê-la, e ela ficou ali estática, querendo não pensar em nada.
Um pássaro cantou distante um canto triste e lastimoso e ela voltou a si. Olhou em seu redor e viu que tudo tinha vida, pulsava. Chamou seu amigo vento com seu jeito mansinho e cochichou-lhe algo em segredo. Depois foi até o rio e ficou a contemplar-se no espelho das águas. Viu-se por inteira e num impulso abraçou-se e foi seu primeiro abraço de amor. Deu um último olhar para aquele lugar que tanto amava e lentamente foi para o fundo do rio indo encontrar-se com sua sombra, pois precisava ser inteira.
Só muito tempo depois descobriram o acontecido. Quando alguém casualmente encontrou as roupas dela a beira do rio.
Houve muitos comentários, sobre aquela moça estranha, mas logo esqueceram o fato.
A família continua morando na mesma casa. Há quem diga já ter visto nas águas turvas do rio o reflexo de um triste par de olhos e isso sempre acontece nos dias em que o vento sussurra mansinho, mas isso é só conversa!

(23/03/2010)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

ECLIPSE!

Eu menina...